15 de fev. de 2014

Uma ave de natal



                É engraçado como a pena e a preocupação de algumas pessoas são tão nítidas a ponto que ficamos com pena de nós mesmos, mais ainda do que já temos. Antônio achava graça e se chateava em mesma proporção quando via isso.

-- Sabe, não precisa me olhar assim toda vez que venho comprar – Respondeu à mocinha do caixa de supermercado enquanto guardava as moedas do troco e abria o maço do Marlboro. Tentou dar um sorriso no intuito de diminuir a seriedade no ar, mas a pele pálida e as olheiras fizeram-no parecer estupidamente falso.

-- Podia tentar parar de fumar. – Disse ela, pela enésima vez, mas sem tanta energia nas palavras como nas primeiras. Tinha olhos pidões. Era uma garota bondosa, preocupada com clientes, pensava Antônio. Excessivamente bondosa. – Faz mal à saúde.

-- Podia, mas tem coisas piores nesse mundo pra respirar. A nicotina é quase um perfume. – Disse, colocando o cigarro na boca e saindo com um sorriso de lado.

                Enquanto descia a rua na direção de seu solitário lar, ele se lembrava de tantos outros rostos preocupados com seu excesso de cigarro, com seu excesso de estresse, com seu excesso de niilismo e, principalmente, com seu excesso de solidão. Se envolvera com poucas mulheres em seus trinta e poucos anos de vida, mas cada uma delas havia tentado a mesma proeza: muda-lo.

                Desde o espalhafatoso “pare de se drogar, isso vai te matar” – que, de fato, havia funcionado, seus fumos se limitaram às possibilidades legais no mercado – até o sutil “precisa se abrir mais”. Desabafar é bom, se não desabafar com alguém vai endoidecer, quase ouvia dizer na mesma voz de Laura, sua última namorada e a mais paciente de todas. Mas nenhuma delas conseguiu os resultados esperados e, por mais que ainda o amassem, preferiam a felicidade ao amor. Nunca as condenou.

Até porque, de fato, elas não sabiam o que ele passava.

                Ninguém sabe.

                Antônio entrou na casa, que cheirava a frescor e eucalipto – cortesia da limpeza da diarista que lhe cumpria tal serviço a alguns fiéis meses –, seguiu andando até a cozinha. No meio do caminho tropeçou em algo e teve de se apoiar com as mãos na parede para não beijar o chão.

-- Filho da... – Interrompeu a frase ao ver que se tratava de um pequeno sapato... de criança? Deveria ser de uma criança com quatro ou cinco anos de idade, mas era uma criança. Crianças por perto, sem palavrões. Mas ficou encucado de onde viera o sapato e porque estava abandonado em ponto estratégico para derrubá-lo. Se deitou no sofá e ficou encarando o pequeno sapato enquanto a ponta dourada do cigarro ia ficando mais próxima dos lábios.

                Será que foi a Madalena? Talvez fosse, ele acreditava que havia ouvido a diarista comentar outro dia sobre um sobrinho pequeno que tinha de cuidar. E Madalena era boa para cuidar de pessoas. E como era, Antônio se lembrou do dia que estavam sós na sala e do decote que ela estava usando, e no beijo deram, e nos abraços lascivos, e nos passos até a cama e... então despertou para o presente, continuava segurando o sapato de uma criança. Crianças por perto, sem falar de sexo. Elas podem ser pestes, mas são o futuro da humanidade. E ergueu o sapato quase como se fosse um troféu de seu nobre pensamento. Jogou o sapato para o lado, apagou a bituca do cigarro num cinzeiro do lado do sofá e lentamente fechou os olhos.
                Alguém havia apertado a tecla de um piano. Talvez um dó. Antônio acordou e viu Madalena limpando a sala, passando o tira-pó na televisão enquanto seu sobrinho brincava no tapete da sala. Num instante, Madalena foi buscar o lustra-móveis na área de serviço e, como toda criança, seu sobrinho tentou desafiar as lógicas do bom senso adulto. Enfiou a mão debaixo da estante e, meio a um pedaço de pó acumulado, encontrou um pedaço de vidro quebrado.

                Antônio fitou em silêncio a criança engolir o pedaço de vidro pontiagudo e acendeu um cigarro enquanto a observava começar a se engasgar. Logo Madalena chegaria correndo até a sala, mas seria tarde demais.
                Antônio abriu os olhos e estava um silêncio completo na sala. Sem pianistas. Se levantou preguiçosamente e foi até a estante, se agachou e enfiou as mãos por baixo até pegar o acúmulo de pó e um pedaço de vidro. Recolheu-os e jogou na privada, a descarga tratou de levar o perigo embora.
                Bebeu água e fitou o relógio digital pendurado na parede da sala, eram duas da madrugada ainda. Voltou a dormir, dessa vez na sua cama.

                O instrumentista não perdoava um sol em seu piano, longo e sombrio. Antônio terminava de subir o morro a pé e quase alcançava o mercado quando via a mocinha do caixa saindo apressadamente do trabalho com sua bolsa, ela teria folga em plena segunda. Sortuda. Ela se despedia sem olhar para trás e dois passos rua adentro foram o suficiente para ser atropelada e arrastada por um enorme caminhão de entregas por vários metros. Ou talvez nem tão sortuda. Ele não conseguia ver o corpo, mas fumou – nervoso – mais um cigarro enquanto via o sangue escorrer pela roda do caminhão. Segundos depois, em seu mundo, Antônio lavava o rosto e se encarava no espelho do banheiro, com os olhos marejados de quem deseja chorar, mas reconhece a tolice do ato o suficiente para não fazê-lo.

                Era segunda-feira e a mocinha saia apressada do mercado com sua bolsa por arrumar. Mas foi interrompida:
-- Ei mocinha, não me vendeu o cigarro de hoje ainda.

                Ela parou e sorriu, voltou alguns passos para conversar com o estranho comprador de cigarros. Um caminhão de entregas passou apressadamente pela rua e seguiu para o centro da cidade, espalhando fumaça de combustível por onde passara:
-- Viu, tem coisas piores no mundo pra respirar. – Riu após vê-la tossir fugindo da fumaça.
-- Mas não quer dizer que o cigarro faça bem. – Ela havia achado graça na piada. – É triste, mas acho que hoje vai ter que comprar cigarros com meu colega.
-- Hmm. É uma pena. E como seu colega te chama?
-- O que?
-- Como ele te chama. Qual é seu nome, mocinha dos cigarros?
-- Não, não... – Ela havia rido mais pela própria lentidão de pensamento do que pela piada. – Meu nome é Priscila.
-- Prazer em te conhecer Priscila. Meu nome é Antônio.

                Os dois apertaram as mãos, sorriram mais uma vez um para o outro e ela seguiu apressadamente pela rua após se despedir. Antônio ainda tinha metade de seu maço, então não precisou entrar no mercado.

                Tragédias, mortes, corpos de mulheres, de velhos e crianças, assaltos, vinganças e, novamente, a morte. Chorar era tolice, ao menos tinha sorte de em seu último pesadelo, não ter visto o corpo e apenas o sangue. Era um dia de sorte para Antônio.

                Puxou mais um cigarro e acendeu. Tinha tais pesadelos todas as noites. Desabafar é bom, se não desabafar com alguém vai endoidecer, ouvia Laura dizer.

                Até a hora que fosse fechar os olhos, não haveria mais cigarro algum no maço.

                De repente Antônio acordou, olhou atordoado para os lados. Não ouvira piano algum. Talvez o instrumentista tivesse se rebelado e preferido um pandeiro? Não, ele seguiu apressadamente para sala e viu o relógio marcar oito horas da manhã.

                Ele havia dormido. Sem sonhar. Pela primeira vez em sua vida.

                Seguiu alegre para o banheiro e viu o próprio rosto mais animado, nem mesmo uma tosse repentina detivera sua alegria. Mas parou de sorrir ao ver pequenas gotículas vermelhas sob os lábios pálidos. Olhou para sua mão e viu sangue. Então entendeu.

                Antônio não iria sonhar mais. E nem fumar.  

                Foda-se se era tolice, se pôs a chorar.

1 de mai. de 2012

Lobo exausto


O homem acorda. Pensa na infelicidade de ter acordado quando o sono tem sido uma cura. Se levanta e, como um boneco de corda, segue suas rotinas. Seu banho, seu café, sua busca pelos contatos antigos. É na realidade uma busca pelo seu eu antigo, que não consegue encontrar.

Alguém levou seu eu antigo e não quis devolver. O resultado é vazio. Não tem nem que ama e nem o próprio amor. Sua cabeça está baixa, olhando pro chão ou pro distante, mas na verdade está olhando só pra si mesmo, com o mesmo olhar distante. Não sente seu corpo estar na mesma frequência da sua alma.

Minutos depois já tem a bebida no copo e o cigarro a vista. E pensa nesse destino triste dos que lutam sem luta alguma. Deixa pra depois a bebida e o cigarro, como em todos os dias e o depois nunca chega. Já aprendeu que quando mais precisa das coisas é quando menos deve procurá-las. Mas ainda dói sofrer assim. Uma linha prateada corre pelos olhos, acompanhando um incontrolável desejo de fazer caretas e choramingar. É patético. Se acha patético.

Então ele escuta o som da chuva. Gotas caindo insistentemente do céu sobre o jardim, para onde ele vai. Sente o peso da camiseta aumentar. Então percebe o fato de que quando se está na chuva, é difícil distinguir o que são verdadeiras lágrimas e o que é chuva. Só se sente frio. Não sente dor, não sente raiva, não sente nada. Só frio. E a água vai lavando sua alma pouco a pouco, para que seja suja novamente pela mente que não esquece o passado maculado. E eis que o homem permanece assim. O que é uma lágrima diante de tantas? A chuva fica pior. E piora. A camiseta e a calça estão pesadas. A alma já está leve.

Quando retorna à vida humana após um banho quente, relembra sua insignificância. Errou tanto. Foi punido tanto. Para cada pessoa que esnobou ou não deu atenção em vida, viu-se sofrendo cada dia por ter sido abandonado quando mais precisou de alguém. Quando mais se precisa das coisas, é quando menos se deve procurá-las. Pois se procura, não vai encontrar. Só que esse meio caminho só lhe trarão fantasmas piores para lidar no futuro.

                                    Dedico este texto não a alguém, mas a solidão, que é a constante de todos os fins.

19 de jun. de 2011

O espelho (parte I)

                                               I

            - Fui enganado... Não acredito... isso é mentira... – Bruno estava desesperado, olhando pra tudo ao seu redor, que havia se transformado num vazio total, ainda havia sangue manchando a própria camiseta polo, na altura da barriga.
            Começou a chorar, enquanto olhava para o espelho, que agora refletia seu próprio quarto vazio.

                                               II

            - Já não basta ter comprado essa casa velha, meu pai ainda guarda o lixo dos antigos donos... – Resmungou o adolescente, com os olhos vermelhos, ainda respirando pesado por ter chorado como uma criança a pouco. Bruno era filho único de José Medazzi, um Medazzi. A família tinha muito dinheiro e poder, ao menos suficientes para terem dado à Bruno uma vaga no melhor colégio particular da capital, a oportunidade de poder passar a noite em qualquer uma das três mansões seculares que o pai havia comprado e, durante o verão, ver o mar pela janela de outro casarão, não tão antigo quanto os outros, próximo ao mar de Ubatuba. Era dinheiro suficiente para pagar inúmeros empregados. Dinheiro o suficiente vindo de uma empresa poderosa o suficiente para fazer se calar qualquer um que enfezasse com o jovem Medazzi.
            - Dinheiro pra tudo, né? – Repetiu a frase que o pai mais gostava de lhe dizer. Falou quase deixando o soluço dominá-lo de novo e começar outra sequência de choro como as sombrancelhas arqueadas e a boca aberta, trêmula, pareciam anunciar. Mas então fechou os olhos vermelhos com força, as sombrancelhas e a boca se fecharam numa expressão de raiva. Bruno encarava o lado, com um olhar furioso, apenas para não encarar sua fronte, não que estivesse prestando atenção ao que olhava, só imaginando no que odiava, o que se resumia ao pai no momento. Então riu. Eu sou mesmo idiota, eu acreditei nele. Eu sou assim, todo mundo me engana, até... até meu pai... Levantou a cabeça, decidiu prestar atenção ao seu redor.
            Onde o “lixo” que havia vindo de brinde com a casa secular, construída numa fazenda afastada, não tocada desde que sua última dona desaparecera, sem deixar descendentes. Devia ter sido uma velha infeliz, e desapareceu, que nem eu queria agora. Sumir! Era um grande quarto carregado de caixas e móveis cobertos por lonas e pela camada branca da poeira que honra tudo que é abandonado. Havia algumas teias de aranha, mesmo agora – confuso – Bruno não ousou mexer na teia. Tinha medo delas, até das menores, pensava que mesmo uma minúscula podia ter a malícia de invadir-lhe o olho e cegá-lo. Evitando a teia, seguiu até algo que lhe chamou a atenção, a única coisa que descobriu do quarto inteiro para que pudesse olhar seu próprio rosto através de um espelho secular.
            As janelas estavam fechadas e a única coisa que iluminava o quarto de teto baixo era um emaranhado de fios, ou assim ele pensava, cobertos por fita isolante e de onde pendia uma antiga e redonda lâmpada de luz amarelada. Nem mesmo os tons amarelados e o pouco de pó que cobria o espelho puderam esconder a feiúra de seu rosto choroso agora. Estou ridículo, chorando por uma merda, e eu sabia que era um merda. Limpou o espelho enquanto lembrava como o pai havia lhe prometidos várias e várias vezes que iriam passar as férias juntos, sem ninguém para atrapalhar. E sempre foi assim desde que Bruno se conhecia por gente, filho de um grande magnata, e só. Havia perdido a mãe quando tinha pouco menos que dois anos, e para lembrar do rosto dela tinha que recorrer às fotos e para ter o carinho e o afeto maternal, tinha que recorrer à própria imaginação.
Dessa vez o pai tinha prometido passar duas semanas com o filho naquela chácara recém comprada, enquanto eram suas férias de Julho. Mas mal tinham chegado, o pai recebeu uma ligação. Como sempre, ele disse que já estava indo. Como sempre virou para Bruno e lhe disse que sentia muito, mesmo sem sentir. E, como sempre, Bruno se lembrava do sentimento de odiar a si mesmo por ter perdido tempo confiando no pai.
            Viu uma mesa perto, já mais calmo, onde o ódio se tornava auto-depreciação. Cuidar de mim... hunf... como se valesse a pena... Tirou o pó que estava sobre a mesinha, e botou o seu. O ajeitou em em três fileiras brancas. Tirou um pequeno canudo do bolso da blusa e inspirou com força. Limpou a ponta do nariz e se jogou ao lado, olhando no espelho. Fez um revólver com os dedos e atirou no próprio reflexo, fechando um dos olhos para fingir que mirava, deixou a mão repousa no chão em seguida, quando levantou o olhar de volta ao espelho. Mas o que...?
            De repente, forçou os olhos para enxergar melhor aquilo que seus olhos estranhavam. Fechou-os, apertou o próprio rosto com as mãos e depois deu em si mesmo um pequeno tapinha para acordar. Ainda a via.
            Branca como a neve, com um rosto triangular e delicado, dentro de um grande vestido branco. Assim era a figura feminina que surgia no espelho, diante de Bruno, o olhando com a mesma incredulidade estampada no rosto. Estava deitada no chão e foi se levantando desajeitadamente, mantendo fixo o olhar surpreso para o garoto, com o coração saltando à boca. Bruno nem piscava, duro como uma estátua.
            - Pode me ver? – Perguntou a voz doce e agitada.
            - E-e-eu... – E gaguejou durante alguns segundos antes de se levantar em desespero e sair correndo para fora do quarto.

                                                           III

            Tinha dezesseis anos, mas se escondeu como uma criança, fugiu para o próprio quarto, trancou a porta, se jogou na cama, escondido entre o próprios cobertores, tremendo, fez sua própria escuridão dentro das camadas grossas de pano. O que foi isso? O que foi isso? O que foi isso? Estava tremendo e se encasulou alí, em posição fetal, e assim ficou sem poder definir quando foi que o sono o havia pego.


            Acordou horas depois, com uma forte dor de cabeça, Quando foi que eu vim pra cama? E se sentou na cama com os olhos semi-fechados, fugindo da luz que vinha do corredor. Quando as memórias voltaram à mente, riu de si mesmo sobre o que havia visto, deduziu que a própria droga, ou alguma coisa misturada nela, havia feito ele delirar daquele jeito. A cocaina! Então esbugalhou os olhos de novo. Se alguém descobrisse sobre a droga, ele estaria com problemas e havia fugido deixando ela lá, abandonada assim como a porta aberta e a luz ligada. Merda, merda, merda. E saiu correndo, agora fazendo o trajeto inverso do de antes. Com a mesma velocidade, porém mais lúcido.
            Quando chegou frente a porta, ficou aliviado. Ela ainda estava aberta. A luz dourada da redonda lampada que pendia do teto ainda estava acesa e as filas brancas ainda estavam na mesinha. Se aproximou da mesinha e puxou com a mão o pó para a outra, juntando um montinho de cocaína na mão direita. Tenho que parar com essa merda. Nunca pensei que ia acontecer is... Travou. Boquiaberto. Novamente.
            A jovem que devia ter sua idade estava com os longos cabelos negros caindo ao chão e o olhar surpreso para ele, mas dessa vez ela foi mais rápida. Começou a dizer agitadamente:
            - Eu vi você ontem, você pode ver não é? Responde! Eu sei pode, por favor, eu... responde, por favor...
            Mas como?
            - Você... – Ele se aproximou do espelho e levantou lentamente o braço, para pousar hesitante, um dos dedos no vidro do espelho.
            O dedo tocou o espelho. Sentiu a camada fria do vidro e deixou uma pequena marca embaçada da ponta do indicador, que logo desapareceu. Era um espelho normal, mas então como se explicava a forma feminina que ele via diante de si? Estava ficando louco?
            - Diga alguma coisa, por favor... Eu não falo com ninguém faz... – Antes que terminasse foi interrompida pelo adolescente.
            - Você não é real. – Disse, se afastando alguns passos para mais perto da lâmpada e longe do espelho.
            - Eu sou, por favor, acredite, eu só estou presa aq...
            - Não.... é.... – Apontava freneticamente o indicador na direção do espelho, balançando a mão. – Real. – Disse com firmeza a última palavra, mais para si mesmo do que para a figura que surgia diante dele.
            Apagou a luz, andou para fora do quarto e fechou a porta, abandonando o espelho e a estranha figura à escuridão.

                                               IV

            - Bruno, seu pai quer falar com você. – Disse uma das empregadas da casa, Shirlei. Uma mulher de altura tímida, não tão discreta quanto as formas do corpo, tinha sempre o mesmo problema com dietas e com os doces, sempre os doces. Sempre parecia estar sorrindo e achava feio que não sorrissem, por isso achou feio quando Bruno chegou perto, carrancudo, mas era filho do patrão, o conhecera um dia antes e já ia arranjar problema? Passou o telefone pro garoto, se afastando para ir embora logo, mas mal fez uma curva saindo da sala, grudou na parede atrás dela, para poder ouvir a conversa sem ser vista. Era um dos male da gordinha, ser curiosa.
            - Oi pai. – Disse secamente, tentando se conter, a voz de Bruno. Esperava que o pai fosse pedir desculpas ou oferecer alguma compensação como sempre, talvez uma promessa de outra viagem para os próximos dias. O adolescente esperava isso e, quando o pai falasse, o iria bombardear com palavras odiosas ou algo que sabia que iria irritar o pai, ele não merecia atenção alguma.
            Mas não foi isso que aconteceu.
            - Bruno, olha, aqui é o seu pai. Eu sei que deve ter sido uma merda eu ter saido ontem assim no meio da tarde, a gente mal tinha chegado, mas o pior é que vou ter que ficar pra cá mais uns dias e... – E antes que Bruno pudesse falar alguma, vozes falaram com seu pai ao fundo e ele retornou com a voz apressada – Desculpa, filho, vou ter que sair agora, a gente se fala amanhã. – E o telefone ficou mudo do outro lado.
            Shirlei quase pulou de susto quando ouviu o adolescente gritar e arremessar o telefone na parede com toda a força, fazendo dele em pedaços. Mas ela se limitou a apenas fechar os olhos rapidamente quando aconteceu. Ela queria ter sido uma mosquinha para poder ter ouvido o mesmo que Bruno ouvira e talvez entender o motivo da ira do rapaz.

                                               V

            - Você não vai falar nada...? – A figura feminina estava em silêncio fazia alguns minutos, desde que desistira de falar com o garoto que se jogara no chão alguns minutos atrás, como um saco de arroz, com as costas num sofá abandonado e coberto por uma lona. Soprando a fumaça que tirava de um cigarro na boca, Bruno se limitava a encará-la, sem responder nenhuma pergunta.
            - Você não existe – Disse ele, finalmente respondendo à garota.
            - Existo! – Gritou ela, já irritada com aquilo. O garoto ficou indiferente, soprou mais um jato de fumaça branca e encarou-a com os olhos inchados.
            - Não existe. – Repetiu com uma voz cansada. Tinha certeza que estava louco agora, mas parecia calmo em relação a isso, como se tivesse aceitado sua situação – Faz parte da minha loucura. É óbvio que eu ia enlouquecer uma hora... E... – Levantou as sombrancelhas numa expressão surpresa fingida – Enlouqueci.
            - Pergunte qualquer coisa, eu provo que sou real. – Implorou a moça.
            - O que é você, então? – Perguntou, com uma expressão de escárnio, não importava a resposta dela, ou assim ele pensou.
            - Sou uma... – Ela pensou um pouco para responder – Uma garota. – A resposta fez o garoto tirar o sorriso do rosto e tomar uma expressão de ira, começou a gritar.
            - Eu sei que você é uma garota, porra! Eu tou vendo! – E jogou um dos tênis no espelho, o objeto atravessou o vidro, como se tivesse mergulhado nas águas de um lago, fazendo ondulações no vidro. Quando chegou do outro lado, a menina colocou desajeitadamente os braços na frente do rosto para se defender do tênis e conseguiu.
            - Meu deus, desculpa... – E, chocado com aquilo, quase saiu de onde estava para ir para perto do vidro ajudar a moça quando... Espera, não seja idiota... – Você não existe – Voltou à própria indiferença, tragando de novo enquanto a ponta do cigarro brilhava alaranjada, deixando um rastro de cinza queimado para trás.
            - O que acha que foi isso então?! – Gritou a moça, se recuperando do ataque do tênis.
            - Um truque. Minha mente está tentando me... – E abriu os braços pensando se deveria mesmo estar discutindo com um fruto da sua imaginação – enganar.
            - Eu acho que você super estima a própria mente. – Resmungou a moça, trazendo por alguns segundos a ira de volta ao rosto de Bruno. Ele quase jogou o outro tênis e ameaçou quebrar o vidro com as próprias mãos se fosse o caso quando desistiu e jogou de volta o tênis do lado do pé.
            - Você não existe, você não existe. – E ficou repetindo com um sorriso no rosto de quem está tendo uma vitória. Consigo mesmo, talvez. – É bonita, fala bonito. Mas não é... real...
            A moça ruborizou com o elogio, de uma forma que deconcertou o garoto. Meu deus, acabei de cantar uma ilusão. Não, não foi uma cantada, saiu sem querer, eu só estava... Espera! Ela não existe! E começou a bater a própria mão na cabeça.
            - Ok, pode ir embora. – Disse, por fim, abanando as mãos na direção da moça.
            - Ir embora pra onde? – Perguntou ela, confusa.
            - Pra qualquer lugar, sei lá, suma para dentro do vidro. Só desapareça da minha mente, eu não... eu não quero ficar louco...
            - Meu deus... Olha, se eu pudesse fazer qualquer outra coisa além de ficar olhando pra um garoto infeliz, eu faria, mas eu... – Ela foi interrompida quando Shirlei entrou no pequeno quarto, encancarando a porta e chegando perto do garoto para avisá-lo do jantar.
            - Eu não vou comer. – Respondeu seco.
            - Mas Bruno... – Começou a gordinha, que logo foi cortada pela ira do garoto.
            - Eu já disse que não vou comer! – Gritou, furioso. A empregada se virou e iria ir embora o mais rápido que podia, quando viu a figura feminina no espelho. A moça estava com os olhos castanho-claros fixos na empregada. As duas se entreolharam durante alguns segundos, Shirley se manteve rigidamente boquiaberta. Fez um sinal da cruz, o que chamou a atenção de Bruno, que saiu de sua depressão no mesmo instante para se levantar surpreso. – E-e-e-espera, você pode ver ela? – Perguntou, apontando para a garota. Todos os três estavam assustados, se entreolhando.