19 de jun. de 2011

O espelho (parte I)

                                               I

            - Fui enganado... Não acredito... isso é mentira... – Bruno estava desesperado, olhando pra tudo ao seu redor, que havia se transformado num vazio total, ainda havia sangue manchando a própria camiseta polo, na altura da barriga.
            Começou a chorar, enquanto olhava para o espelho, que agora refletia seu próprio quarto vazio.

                                               II

            - Já não basta ter comprado essa casa velha, meu pai ainda guarda o lixo dos antigos donos... – Resmungou o adolescente, com os olhos vermelhos, ainda respirando pesado por ter chorado como uma criança a pouco. Bruno era filho único de José Medazzi, um Medazzi. A família tinha muito dinheiro e poder, ao menos suficientes para terem dado à Bruno uma vaga no melhor colégio particular da capital, a oportunidade de poder passar a noite em qualquer uma das três mansões seculares que o pai havia comprado e, durante o verão, ver o mar pela janela de outro casarão, não tão antigo quanto os outros, próximo ao mar de Ubatuba. Era dinheiro suficiente para pagar inúmeros empregados. Dinheiro o suficiente vindo de uma empresa poderosa o suficiente para fazer se calar qualquer um que enfezasse com o jovem Medazzi.
            - Dinheiro pra tudo, né? – Repetiu a frase que o pai mais gostava de lhe dizer. Falou quase deixando o soluço dominá-lo de novo e começar outra sequência de choro como as sombrancelhas arqueadas e a boca aberta, trêmula, pareciam anunciar. Mas então fechou os olhos vermelhos com força, as sombrancelhas e a boca se fecharam numa expressão de raiva. Bruno encarava o lado, com um olhar furioso, apenas para não encarar sua fronte, não que estivesse prestando atenção ao que olhava, só imaginando no que odiava, o que se resumia ao pai no momento. Então riu. Eu sou mesmo idiota, eu acreditei nele. Eu sou assim, todo mundo me engana, até... até meu pai... Levantou a cabeça, decidiu prestar atenção ao seu redor.
            Onde o “lixo” que havia vindo de brinde com a casa secular, construída numa fazenda afastada, não tocada desde que sua última dona desaparecera, sem deixar descendentes. Devia ter sido uma velha infeliz, e desapareceu, que nem eu queria agora. Sumir! Era um grande quarto carregado de caixas e móveis cobertos por lonas e pela camada branca da poeira que honra tudo que é abandonado. Havia algumas teias de aranha, mesmo agora – confuso – Bruno não ousou mexer na teia. Tinha medo delas, até das menores, pensava que mesmo uma minúscula podia ter a malícia de invadir-lhe o olho e cegá-lo. Evitando a teia, seguiu até algo que lhe chamou a atenção, a única coisa que descobriu do quarto inteiro para que pudesse olhar seu próprio rosto através de um espelho secular.
            As janelas estavam fechadas e a única coisa que iluminava o quarto de teto baixo era um emaranhado de fios, ou assim ele pensava, cobertos por fita isolante e de onde pendia uma antiga e redonda lâmpada de luz amarelada. Nem mesmo os tons amarelados e o pouco de pó que cobria o espelho puderam esconder a feiúra de seu rosto choroso agora. Estou ridículo, chorando por uma merda, e eu sabia que era um merda. Limpou o espelho enquanto lembrava como o pai havia lhe prometidos várias e várias vezes que iriam passar as férias juntos, sem ninguém para atrapalhar. E sempre foi assim desde que Bruno se conhecia por gente, filho de um grande magnata, e só. Havia perdido a mãe quando tinha pouco menos que dois anos, e para lembrar do rosto dela tinha que recorrer às fotos e para ter o carinho e o afeto maternal, tinha que recorrer à própria imaginação.
Dessa vez o pai tinha prometido passar duas semanas com o filho naquela chácara recém comprada, enquanto eram suas férias de Julho. Mas mal tinham chegado, o pai recebeu uma ligação. Como sempre, ele disse que já estava indo. Como sempre virou para Bruno e lhe disse que sentia muito, mesmo sem sentir. E, como sempre, Bruno se lembrava do sentimento de odiar a si mesmo por ter perdido tempo confiando no pai.
            Viu uma mesa perto, já mais calmo, onde o ódio se tornava auto-depreciação. Cuidar de mim... hunf... como se valesse a pena... Tirou o pó que estava sobre a mesinha, e botou o seu. O ajeitou em em três fileiras brancas. Tirou um pequeno canudo do bolso da blusa e inspirou com força. Limpou a ponta do nariz e se jogou ao lado, olhando no espelho. Fez um revólver com os dedos e atirou no próprio reflexo, fechando um dos olhos para fingir que mirava, deixou a mão repousa no chão em seguida, quando levantou o olhar de volta ao espelho. Mas o que...?
            De repente, forçou os olhos para enxergar melhor aquilo que seus olhos estranhavam. Fechou-os, apertou o próprio rosto com as mãos e depois deu em si mesmo um pequeno tapinha para acordar. Ainda a via.
            Branca como a neve, com um rosto triangular e delicado, dentro de um grande vestido branco. Assim era a figura feminina que surgia no espelho, diante de Bruno, o olhando com a mesma incredulidade estampada no rosto. Estava deitada no chão e foi se levantando desajeitadamente, mantendo fixo o olhar surpreso para o garoto, com o coração saltando à boca. Bruno nem piscava, duro como uma estátua.
            - Pode me ver? – Perguntou a voz doce e agitada.
            - E-e-eu... – E gaguejou durante alguns segundos antes de se levantar em desespero e sair correndo para fora do quarto.

                                                           III

            Tinha dezesseis anos, mas se escondeu como uma criança, fugiu para o próprio quarto, trancou a porta, se jogou na cama, escondido entre o próprios cobertores, tremendo, fez sua própria escuridão dentro das camadas grossas de pano. O que foi isso? O que foi isso? O que foi isso? Estava tremendo e se encasulou alí, em posição fetal, e assim ficou sem poder definir quando foi que o sono o havia pego.


            Acordou horas depois, com uma forte dor de cabeça, Quando foi que eu vim pra cama? E se sentou na cama com os olhos semi-fechados, fugindo da luz que vinha do corredor. Quando as memórias voltaram à mente, riu de si mesmo sobre o que havia visto, deduziu que a própria droga, ou alguma coisa misturada nela, havia feito ele delirar daquele jeito. A cocaina! Então esbugalhou os olhos de novo. Se alguém descobrisse sobre a droga, ele estaria com problemas e havia fugido deixando ela lá, abandonada assim como a porta aberta e a luz ligada. Merda, merda, merda. E saiu correndo, agora fazendo o trajeto inverso do de antes. Com a mesma velocidade, porém mais lúcido.
            Quando chegou frente a porta, ficou aliviado. Ela ainda estava aberta. A luz dourada da redonda lampada que pendia do teto ainda estava acesa e as filas brancas ainda estavam na mesinha. Se aproximou da mesinha e puxou com a mão o pó para a outra, juntando um montinho de cocaína na mão direita. Tenho que parar com essa merda. Nunca pensei que ia acontecer is... Travou. Boquiaberto. Novamente.
            A jovem que devia ter sua idade estava com os longos cabelos negros caindo ao chão e o olhar surpreso para ele, mas dessa vez ela foi mais rápida. Começou a dizer agitadamente:
            - Eu vi você ontem, você pode ver não é? Responde! Eu sei pode, por favor, eu... responde, por favor...
            Mas como?
            - Você... – Ele se aproximou do espelho e levantou lentamente o braço, para pousar hesitante, um dos dedos no vidro do espelho.
            O dedo tocou o espelho. Sentiu a camada fria do vidro e deixou uma pequena marca embaçada da ponta do indicador, que logo desapareceu. Era um espelho normal, mas então como se explicava a forma feminina que ele via diante de si? Estava ficando louco?
            - Diga alguma coisa, por favor... Eu não falo com ninguém faz... – Antes que terminasse foi interrompida pelo adolescente.
            - Você não é real. – Disse, se afastando alguns passos para mais perto da lâmpada e longe do espelho.
            - Eu sou, por favor, acredite, eu só estou presa aq...
            - Não.... é.... – Apontava freneticamente o indicador na direção do espelho, balançando a mão. – Real. – Disse com firmeza a última palavra, mais para si mesmo do que para a figura que surgia diante dele.
            Apagou a luz, andou para fora do quarto e fechou a porta, abandonando o espelho e a estranha figura à escuridão.

                                               IV

            - Bruno, seu pai quer falar com você. – Disse uma das empregadas da casa, Shirlei. Uma mulher de altura tímida, não tão discreta quanto as formas do corpo, tinha sempre o mesmo problema com dietas e com os doces, sempre os doces. Sempre parecia estar sorrindo e achava feio que não sorrissem, por isso achou feio quando Bruno chegou perto, carrancudo, mas era filho do patrão, o conhecera um dia antes e já ia arranjar problema? Passou o telefone pro garoto, se afastando para ir embora logo, mas mal fez uma curva saindo da sala, grudou na parede atrás dela, para poder ouvir a conversa sem ser vista. Era um dos male da gordinha, ser curiosa.
            - Oi pai. – Disse secamente, tentando se conter, a voz de Bruno. Esperava que o pai fosse pedir desculpas ou oferecer alguma compensação como sempre, talvez uma promessa de outra viagem para os próximos dias. O adolescente esperava isso e, quando o pai falasse, o iria bombardear com palavras odiosas ou algo que sabia que iria irritar o pai, ele não merecia atenção alguma.
            Mas não foi isso que aconteceu.
            - Bruno, olha, aqui é o seu pai. Eu sei que deve ter sido uma merda eu ter saido ontem assim no meio da tarde, a gente mal tinha chegado, mas o pior é que vou ter que ficar pra cá mais uns dias e... – E antes que Bruno pudesse falar alguma, vozes falaram com seu pai ao fundo e ele retornou com a voz apressada – Desculpa, filho, vou ter que sair agora, a gente se fala amanhã. – E o telefone ficou mudo do outro lado.
            Shirlei quase pulou de susto quando ouviu o adolescente gritar e arremessar o telefone na parede com toda a força, fazendo dele em pedaços. Mas ela se limitou a apenas fechar os olhos rapidamente quando aconteceu. Ela queria ter sido uma mosquinha para poder ter ouvido o mesmo que Bruno ouvira e talvez entender o motivo da ira do rapaz.

                                               V

            - Você não vai falar nada...? – A figura feminina estava em silêncio fazia alguns minutos, desde que desistira de falar com o garoto que se jogara no chão alguns minutos atrás, como um saco de arroz, com as costas num sofá abandonado e coberto por uma lona. Soprando a fumaça que tirava de um cigarro na boca, Bruno se limitava a encará-la, sem responder nenhuma pergunta.
            - Você não existe – Disse ele, finalmente respondendo à garota.
            - Existo! – Gritou ela, já irritada com aquilo. O garoto ficou indiferente, soprou mais um jato de fumaça branca e encarou-a com os olhos inchados.
            - Não existe. – Repetiu com uma voz cansada. Tinha certeza que estava louco agora, mas parecia calmo em relação a isso, como se tivesse aceitado sua situação – Faz parte da minha loucura. É óbvio que eu ia enlouquecer uma hora... E... – Levantou as sombrancelhas numa expressão surpresa fingida – Enlouqueci.
            - Pergunte qualquer coisa, eu provo que sou real. – Implorou a moça.
            - O que é você, então? – Perguntou, com uma expressão de escárnio, não importava a resposta dela, ou assim ele pensou.
            - Sou uma... – Ela pensou um pouco para responder – Uma garota. – A resposta fez o garoto tirar o sorriso do rosto e tomar uma expressão de ira, começou a gritar.
            - Eu sei que você é uma garota, porra! Eu tou vendo! – E jogou um dos tênis no espelho, o objeto atravessou o vidro, como se tivesse mergulhado nas águas de um lago, fazendo ondulações no vidro. Quando chegou do outro lado, a menina colocou desajeitadamente os braços na frente do rosto para se defender do tênis e conseguiu.
            - Meu deus, desculpa... – E, chocado com aquilo, quase saiu de onde estava para ir para perto do vidro ajudar a moça quando... Espera, não seja idiota... – Você não existe – Voltou à própria indiferença, tragando de novo enquanto a ponta do cigarro brilhava alaranjada, deixando um rastro de cinza queimado para trás.
            - O que acha que foi isso então?! – Gritou a moça, se recuperando do ataque do tênis.
            - Um truque. Minha mente está tentando me... – E abriu os braços pensando se deveria mesmo estar discutindo com um fruto da sua imaginação – enganar.
            - Eu acho que você super estima a própria mente. – Resmungou a moça, trazendo por alguns segundos a ira de volta ao rosto de Bruno. Ele quase jogou o outro tênis e ameaçou quebrar o vidro com as próprias mãos se fosse o caso quando desistiu e jogou de volta o tênis do lado do pé.
            - Você não existe, você não existe. – E ficou repetindo com um sorriso no rosto de quem está tendo uma vitória. Consigo mesmo, talvez. – É bonita, fala bonito. Mas não é... real...
            A moça ruborizou com o elogio, de uma forma que deconcertou o garoto. Meu deus, acabei de cantar uma ilusão. Não, não foi uma cantada, saiu sem querer, eu só estava... Espera! Ela não existe! E começou a bater a própria mão na cabeça.
            - Ok, pode ir embora. – Disse, por fim, abanando as mãos na direção da moça.
            - Ir embora pra onde? – Perguntou ela, confusa.
            - Pra qualquer lugar, sei lá, suma para dentro do vidro. Só desapareça da minha mente, eu não... eu não quero ficar louco...
            - Meu deus... Olha, se eu pudesse fazer qualquer outra coisa além de ficar olhando pra um garoto infeliz, eu faria, mas eu... – Ela foi interrompida quando Shirlei entrou no pequeno quarto, encancarando a porta e chegando perto do garoto para avisá-lo do jantar.
            - Eu não vou comer. – Respondeu seco.
            - Mas Bruno... – Começou a gordinha, que logo foi cortada pela ira do garoto.
            - Eu já disse que não vou comer! – Gritou, furioso. A empregada se virou e iria ir embora o mais rápido que podia, quando viu a figura feminina no espelho. A moça estava com os olhos castanho-claros fixos na empregada. As duas se entreolharam durante alguns segundos, Shirley se manteve rigidamente boquiaberta. Fez um sinal da cruz, o que chamou a atenção de Bruno, que saiu de sua depressão no mesmo instante para se levantar surpreso. – E-e-e-espera, você pode ver ela? – Perguntou, apontando para a garota. Todos os três estavam assustados, se entreolhando.

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