14 de jun. de 2011

Melissa

                                                           I

            Não! Gritou enquanto lançava a cabeça para fora da água, puxando para os pulmões o ar como se fosse o primeiro de sua vida. O coração da jovem batia rápido, assustado. Pesadelos, foi um pesadelos... Abriu os olhos feito safiras na direção do vazio. Um olhar de convicção em contraste com o corpo trêmulo. As mechas de cabelo escuro escorriam água colados ao rosto molhado. Encarou o vazio com convicção. Isso é o real, se acalme, aqui é o real, aqui é o real.
            Levou as mãos aos olhos para tirar um pouco da água do rosto, já mais calma, e olhou ao redor, agora buscando as mesmas coisas de sempre. O criado mudo que servia de base para a luminária de formas inconstantes lutando num cilindro. Os pôsteres do Nickelback. A cama. O edredon macio. Nada estava lá. Estou numa... banheira?
            A água cristalina apenas deformava em pequenas ondas o corpo nu, mas não o escondia. Estava no extremo de uma espécie de pequena piscina em formato circular feita de porcelana e aberta no chão, com quase um metro de profundidade. Ela levantou o corpo miúdo, mas de mulher, buscando qualquer coisa que pudesse lhe ajudar.
            Os olhos encontraram paredes tão brancas que unidas não pareciam paredes, e sim o infinito diante dela, para todos os lados. Tateou a borda da minúscula piscina e encontrou uma enorme toalha de tom azulado. Enrolou-a no corpo e tirou os pés da água.
            As gotas pareceram manchar o chão como tinta, tornando-se vermelho sangue ao respingar no solo. Sangue? Ela talvez tivesse dado atenção ao fato se as linhas das paredes não tivessem surgido de repente, assim como uma estranha porta de madeira onde antes havia apenas um horizonte infinito e branco.
            A maçaneta de metal prateado girou, cada segundo fazendo os olhos confusos da jovem suspender mais ainda a respiração. Eu não estou em casa, não é meu quarto, não conheço esse lugar. É outro pesadelo...?
            Os olhos estavam embaçados nos primeiros segundos. Viu um homem se aproximar com o rosto vermelho, pensou a primeiro momento que talvez fosse alguma máscara ou seus olhos misturando os tons de algum cabelo ruivo com o rosto branco numa ilusão rubra.
            A nitidez voltou aos olhos. O pânico de batidas rápidas voltou ao coração, assim como o corpo rígido, paralisado, enquanto via o macabro: sob um corpo jovem, vestindo um casaco de peles e uma calça negra de couro, estava um crânio nu de cabelos, olhos e até mesmo pele. Apenas a estrutura óssea do crânio, manchada num vermelho sangue, estava ali, a encarando com suas órbitas vazias. Sim, é um pesadelo, tenho certeza. E jurou ver o crânio sorrir.
            - Bom dia Melissa. – Saudou a criatura macabra.

                                               II

            Pelo menos posso ver isso. Tinha acordado as cinco para se vestir naquela manhã gelada de inverno para pegar o ônibus e buscar aconchego no assento ao lado da janela, no blusão e em alguma música do Legião Urbana. Agora se consolava em ao menos poder ver o nascer do sol pelo vidro do ônibus, no horizonte, enquanto cruzava a estrada entre as duas cidades, separadas por diversas plantações ao longo do caminho.
            A grande esfera vermelha surgia num céu de azul tímido e nuvens sombrias.
            Olhou o celular para ver as horas. Um aviso de agenda saltava em cores importantes a importância do dia seguinte. Dezessete anos... Dezessete anos, sem namorado e nem mesmo a mínima idéia do que vou fazer quando terminar o colégio, isso é... chato. Até esqueceu de ver que horas eram.
            Agora saltava pela paisagem a cidade, quase vazia na maior parte dos lugares por onde o ônibus passava. No primeiro ponto, se sentavam três pessoas e duas delas subiram pela entrada da frente enquanto a terceira pessoa, uma mulher de traços nipônicos totalmente vestida de branco, lhe lançou um olhar confuso como se uma garota olhando pela janela de um ônibus fosse a coisa mais rara do mundo. O veículo continuou o seu caminho e a mulher ficou para trás.
            No ponto seguinte era onde descia. Ficou do lado de fora arrumando os fones de ouvido e a mochila nas costas enquanto esperava as duas amigas descerem para continuarem o caminho pro colégio. Dessa vez a pessoa de branco era um homem negro, de olhos castanhos e cabelo raspado. Havia subido junto com os demais que entravam no ônibus para ir embora daquela cidade enquanto Melissa chegava. O homem a encarou, de olhos esbugalhados.
            Melissa estava se acostumando, parecia que sempre que uma pessoa vestida de branco aparecia para ela, a via como uma assombração ou algo assim, sempre ficavam pasmos e a encaravam até que ela fosse embora, mas nunca tentavam falar com ela na maioria das vezes. Começou a pensar, pela primeira vez com mais atenção, no assunto. Todos eles sempre se vestem de branco, pode ser uma religião ou... sei lá... talvez tenham fugido de algum lugar.
            Ela sabia que provavelmente deveria dar mais atenção a isso, mas quando falava para as amigas percebia que elas estavam mais atentas falando de alguma coisa boba, que não tinham percebido as pessoas de branco. Nenhuma das vezes, são distraídas demais... Ou será que sou que só boto o olho nas coisas erradas. Talvez seja isso, quem sabe elas só não me encarem porque estou encarando elas? Sentiu um pouco de vergonha de sí mesma ao deduzir isso. Mas não era um problema, eram raras as vezes que apareciam essas pessoas vestidas de branco, as vezes uma apenas na semana ou mês inteiro, por mais que nos últimos dias a frequência deles tenham aumentado. Viu mais um, a olhando com uma expressão deprimida, da janela de um pequeno prédio comercial de dois andares. Droga, a música tinha parado e nem percebi. Religou o aparelho.
                                                           III

            - Vamos, se apronte. Parece que demorou a acordar, já é hora do almoço. Escolhi um vestido para você. – Tinha dito a animada criatura macabra que apresentava um crânio vermelho de órbitas vazias onde deveria haver um rosto. Desenhou um meio círculo enquanto se virava para ir embora.
            Vestido? Mas onde... Parecia que a criatura havia entendido os pensamentos de Melissa e tocou no vazio. Não, não era só o vazio. Tocou em algo que antes estava oculto. De repente, parecendo que partia dos dedos esguios da criatura, ia surgindo aos olhos da jovem um suporte de roupas feito de metal pintado em vermelho cromado, brilhante. Sobre ele estava um longo vestido branco. O tecido era macio quando o tocou. E branco. Achou irônico, talvez sem sentido, mas nada fazia sentido ali. Acabe logo. E forçou os olhos fechados, na vã esperança de que, quando reabrisse os olhos, se reencontrasse no próprio quarto, para começar logo a rotina de sempre.
Quando abriu os olhos ainda estava diante do vestido, com a grande taolha enrolada no corpo. Suspirou. Mas não podia negar que tinha curiosidade para saber até onde aquele sonho a levaria. Se vestiu de branco.

                                                           IV

            Bem melhor. Agora estava ouvindo algum rock inglês lento, mas não tinha nem reparado qual o nome da música. Ela brincava com isso, deixava o aparelho escolher uma música aleatoriamente e tentava descobrir qual música era. Não que fosse um jogo compensador. Fosse qual fosse a escolha dela, o aparelho diria o nome e nenhum dos dois – dona e aparelho – sairiam ganhando alguma coisa.
            O sinal vermelho para os pedestres estava aceso. Não fazia diferença, o centro era tão vazio na manhã que a chance de aparecer um carro no meio da travessia eram mínimas. As faixas brancas foram ficando para trás.Olhou para a direção da rua e percebeu que vinha um enorme caminhão da Elma Chips, a barriga roncou enquanto pensava em si mesma comendo um pacote de Ruffles. Apressou os últimos passos mesmo estando longe, por instinto. Já estava no outro lado, segura. Foi quando olhou para trás.
            Um menino que devia ter seus seis ou sete anos, todo vestido de branco, devia ter escapado da mão da mãe e agora estava parado no meio da rua, porque tinha voltado para pegar um pombo. O pássaro havia sido mais esperto, voando para longe. O garoto não. A imagem das roupas brancas do garoto serem manchadas pelo vermelho aterrorizaram no mesmo instante Melissa.
            - SAI DAI! – Gritou ela, correndo na direção dele para puxar-lhe a mão, num súbito ataque de adrenalina. As amigas viraram para trás, gritando por ela. O caminhão ainda estava alguns metros. Vai dar tempo, tem que dar...
            Os olhos diabólicos da grande máquina de metal não hesitaram, não diminuiram a crescer.

                                                           V

            Melissa cruzou um corredor sombrio. Parecia uma mansão. Uma mansão muito antiga. Um olhar rápido pelas gigantescas janelas de vidro que surgiam na lateral direita mostraram a ela como o céu estava nublado, escuro tal como fim de tarde. Continuou andando.
            Quando saiu do corredor, teve certeza que estava onde devia estar. Era um grande salão de refeição nobre. Uma longa mesa retangular se extendia, lançando aos olhos inúmeros pratos e uma variedade enorme de frutas. Ela se sentou na cadeira mais próxima, era a última. No outro extremo da mesa estava a macabra criatura de crânio vermelho, voltando a parecer que sorria, sem Melissa poder explicar como. Entre os dois, do lado direito, havia um rapaz, talvez vinte anos, atacando um prato de arroz com feijão e uma coxa de frango sem muita calma. Um capuz escondia parte do cabelo, mas ainda era possível ver o rosto. Eram olhos negros como a noite e sinistros como a lua cheia. Ainda bem que estão voltados para o frango e não pra mim... Tinha um rosto firme, triangular e uma barba por fazer, castanha. As feições do rapaz lembravam à Melissa os noticiários sobre os árabes do oriente médio.
            - Ora, está linda, Melissa. – Saudou a criatura macabra.
            - Obrigada, senhor. – Respondeu quase por instinto, tentando olhar para a criatura sem parecer que estava olhando para uma assombração, que era o que estava acontecendo, não queria deixar a mostra sua estranheza, seria deseducado. Quase disse que ele também estava bonito, mas as palavras eram tão grossas em falsidade que não quiseram sair da garganta. Mas como assim? Isso é só um pesadelo, porque estou pensando nisso?!
            - Desculpe não ter me apresentado antes, meu nome é Tanat, dono não só dessa mansão, mas de toda região ao redor. Não quero me gabar, mas está diante de um lorde! – E soltou uma gargalhada. Melissa tentou esboçar, com certa dificuldade, um sorriso. Assim como gargalhou de repente, ficou sério de repente, num contraste tão macabro quando sua cabeça. Apontou para o rapaz – Ele se chama Suen, um convidado de honra, assim como você.
O rapaz parou um instante de morder o frango para poder mastigar sossegado.
Nesse meio tempo enviou um olhar cansado para Melissa. Voltou para o frango no instante seguinte, sem dizer nada.
            - O-oi – Respondeu sem vida, tal como o olhar do rapaz.
            - Bem, sirva-se. – A macabra criatura já tinha preparado o assento para ela, o prato, talheres e as opções próximas, estrategicamente escolhidas, ela pensou. Parecia que ele conhecia o gosto dela. Serviu-se com certa timidez.
            Tanat não comia nada, nem mesmo tinha um prato a sua frente. Só os analisava, enquanto os cotovelos pousavam na mesa e as mãos se seguravam abaixo do queixo, uma delas trazendo um anel em forma de crânio de prata num dos dedos. A criatura percebeu a inquietação de Melissa em relação a isso:
            - Bem, assim como vocês, eu não preciso comer nesse mundo. Mas, diferente de vocês, não vivi muito tempo do outro lado para minha alma sentir fome de sabores. Mas sirvam-se.
            - Como assim? – Perguntou ela, parando de comer no mesmo instante. – O-outro lado? – A resposta parecia assustadoramente óbvia naquele contexto, mas gelou quando ele a pronunciou.
            - Ora, os mortos não precisam comer. E você não precisa comer, afinal, você está morta, Melissa. – E novamente o rubro crânio pareceu sorrir.

                                                           VI

            Ela alcançou rapido o garoto, era só puxar a mão do menino e os dois estariam salvos. O caminhão estava longe. Na pressa, ela lançou sua mão sobre a dele e puxou, já olhando para o caminho de volta, principiando a correr. Mas a mão estava vazia.
            Ela olhou para trás e tentou, desesperadamente pegar o garoto pela mão. Agora estava vendo o que estava acontecendo, ou melhor, o que não estava acontecendo. Sua mão apenas deformou a mão do garoto ao tocá-la, atravessando-a, assim como se deforma a imagem de uma linha de fumaça branca ao cortá-la com as mãos.
            O garoto, vestido de branco, estava surpreso e boquiaberto:
            - Você pode me ver?
            Ela estava em choque, sem entender o que era aquilo. Por um alguns instantes sua mente queimou em pensamentos para tentar achar lógica nisso e eram instantes preciosos.
Os gritos das amigas não serviram para chamar sua atenção, nem mesmo o som ensurdecedor da buzina do caminhão.
            O corpo intocável do garoto. Os gritos. A buzina ensurdecedora. O medo e a confusão. Eram as últimas coisas que Melissa sentira.


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