19 de jun. de 2011

O espelho (parte I)

                                               I

            - Fui enganado... Não acredito... isso é mentira... – Bruno estava desesperado, olhando pra tudo ao seu redor, que havia se transformado num vazio total, ainda havia sangue manchando a própria camiseta polo, na altura da barriga.
            Começou a chorar, enquanto olhava para o espelho, que agora refletia seu próprio quarto vazio.

                                               II

            - Já não basta ter comprado essa casa velha, meu pai ainda guarda o lixo dos antigos donos... – Resmungou o adolescente, com os olhos vermelhos, ainda respirando pesado por ter chorado como uma criança a pouco. Bruno era filho único de José Medazzi, um Medazzi. A família tinha muito dinheiro e poder, ao menos suficientes para terem dado à Bruno uma vaga no melhor colégio particular da capital, a oportunidade de poder passar a noite em qualquer uma das três mansões seculares que o pai havia comprado e, durante o verão, ver o mar pela janela de outro casarão, não tão antigo quanto os outros, próximo ao mar de Ubatuba. Era dinheiro suficiente para pagar inúmeros empregados. Dinheiro o suficiente vindo de uma empresa poderosa o suficiente para fazer se calar qualquer um que enfezasse com o jovem Medazzi.
            - Dinheiro pra tudo, né? – Repetiu a frase que o pai mais gostava de lhe dizer. Falou quase deixando o soluço dominá-lo de novo e começar outra sequência de choro como as sombrancelhas arqueadas e a boca aberta, trêmula, pareciam anunciar. Mas então fechou os olhos vermelhos com força, as sombrancelhas e a boca se fecharam numa expressão de raiva. Bruno encarava o lado, com um olhar furioso, apenas para não encarar sua fronte, não que estivesse prestando atenção ao que olhava, só imaginando no que odiava, o que se resumia ao pai no momento. Então riu. Eu sou mesmo idiota, eu acreditei nele. Eu sou assim, todo mundo me engana, até... até meu pai... Levantou a cabeça, decidiu prestar atenção ao seu redor.
            Onde o “lixo” que havia vindo de brinde com a casa secular, construída numa fazenda afastada, não tocada desde que sua última dona desaparecera, sem deixar descendentes. Devia ter sido uma velha infeliz, e desapareceu, que nem eu queria agora. Sumir! Era um grande quarto carregado de caixas e móveis cobertos por lonas e pela camada branca da poeira que honra tudo que é abandonado. Havia algumas teias de aranha, mesmo agora – confuso – Bruno não ousou mexer na teia. Tinha medo delas, até das menores, pensava que mesmo uma minúscula podia ter a malícia de invadir-lhe o olho e cegá-lo. Evitando a teia, seguiu até algo que lhe chamou a atenção, a única coisa que descobriu do quarto inteiro para que pudesse olhar seu próprio rosto através de um espelho secular.
            As janelas estavam fechadas e a única coisa que iluminava o quarto de teto baixo era um emaranhado de fios, ou assim ele pensava, cobertos por fita isolante e de onde pendia uma antiga e redonda lâmpada de luz amarelada. Nem mesmo os tons amarelados e o pouco de pó que cobria o espelho puderam esconder a feiúra de seu rosto choroso agora. Estou ridículo, chorando por uma merda, e eu sabia que era um merda. Limpou o espelho enquanto lembrava como o pai havia lhe prometidos várias e várias vezes que iriam passar as férias juntos, sem ninguém para atrapalhar. E sempre foi assim desde que Bruno se conhecia por gente, filho de um grande magnata, e só. Havia perdido a mãe quando tinha pouco menos que dois anos, e para lembrar do rosto dela tinha que recorrer às fotos e para ter o carinho e o afeto maternal, tinha que recorrer à própria imaginação.
Dessa vez o pai tinha prometido passar duas semanas com o filho naquela chácara recém comprada, enquanto eram suas férias de Julho. Mas mal tinham chegado, o pai recebeu uma ligação. Como sempre, ele disse que já estava indo. Como sempre virou para Bruno e lhe disse que sentia muito, mesmo sem sentir. E, como sempre, Bruno se lembrava do sentimento de odiar a si mesmo por ter perdido tempo confiando no pai.
            Viu uma mesa perto, já mais calmo, onde o ódio se tornava auto-depreciação. Cuidar de mim... hunf... como se valesse a pena... Tirou o pó que estava sobre a mesinha, e botou o seu. O ajeitou em em três fileiras brancas. Tirou um pequeno canudo do bolso da blusa e inspirou com força. Limpou a ponta do nariz e se jogou ao lado, olhando no espelho. Fez um revólver com os dedos e atirou no próprio reflexo, fechando um dos olhos para fingir que mirava, deixou a mão repousa no chão em seguida, quando levantou o olhar de volta ao espelho. Mas o que...?
            De repente, forçou os olhos para enxergar melhor aquilo que seus olhos estranhavam. Fechou-os, apertou o próprio rosto com as mãos e depois deu em si mesmo um pequeno tapinha para acordar. Ainda a via.
            Branca como a neve, com um rosto triangular e delicado, dentro de um grande vestido branco. Assim era a figura feminina que surgia no espelho, diante de Bruno, o olhando com a mesma incredulidade estampada no rosto. Estava deitada no chão e foi se levantando desajeitadamente, mantendo fixo o olhar surpreso para o garoto, com o coração saltando à boca. Bruno nem piscava, duro como uma estátua.
            - Pode me ver? – Perguntou a voz doce e agitada.
            - E-e-eu... – E gaguejou durante alguns segundos antes de se levantar em desespero e sair correndo para fora do quarto.

                                                           III

            Tinha dezesseis anos, mas se escondeu como uma criança, fugiu para o próprio quarto, trancou a porta, se jogou na cama, escondido entre o próprios cobertores, tremendo, fez sua própria escuridão dentro das camadas grossas de pano. O que foi isso? O que foi isso? O que foi isso? Estava tremendo e se encasulou alí, em posição fetal, e assim ficou sem poder definir quando foi que o sono o havia pego.


            Acordou horas depois, com uma forte dor de cabeça, Quando foi que eu vim pra cama? E se sentou na cama com os olhos semi-fechados, fugindo da luz que vinha do corredor. Quando as memórias voltaram à mente, riu de si mesmo sobre o que havia visto, deduziu que a própria droga, ou alguma coisa misturada nela, havia feito ele delirar daquele jeito. A cocaina! Então esbugalhou os olhos de novo. Se alguém descobrisse sobre a droga, ele estaria com problemas e havia fugido deixando ela lá, abandonada assim como a porta aberta e a luz ligada. Merda, merda, merda. E saiu correndo, agora fazendo o trajeto inverso do de antes. Com a mesma velocidade, porém mais lúcido.
            Quando chegou frente a porta, ficou aliviado. Ela ainda estava aberta. A luz dourada da redonda lampada que pendia do teto ainda estava acesa e as filas brancas ainda estavam na mesinha. Se aproximou da mesinha e puxou com a mão o pó para a outra, juntando um montinho de cocaína na mão direita. Tenho que parar com essa merda. Nunca pensei que ia acontecer is... Travou. Boquiaberto. Novamente.
            A jovem que devia ter sua idade estava com os longos cabelos negros caindo ao chão e o olhar surpreso para ele, mas dessa vez ela foi mais rápida. Começou a dizer agitadamente:
            - Eu vi você ontem, você pode ver não é? Responde! Eu sei pode, por favor, eu... responde, por favor...
            Mas como?
            - Você... – Ele se aproximou do espelho e levantou lentamente o braço, para pousar hesitante, um dos dedos no vidro do espelho.
            O dedo tocou o espelho. Sentiu a camada fria do vidro e deixou uma pequena marca embaçada da ponta do indicador, que logo desapareceu. Era um espelho normal, mas então como se explicava a forma feminina que ele via diante de si? Estava ficando louco?
            - Diga alguma coisa, por favor... Eu não falo com ninguém faz... – Antes que terminasse foi interrompida pelo adolescente.
            - Você não é real. – Disse, se afastando alguns passos para mais perto da lâmpada e longe do espelho.
            - Eu sou, por favor, acredite, eu só estou presa aq...
            - Não.... é.... – Apontava freneticamente o indicador na direção do espelho, balançando a mão. – Real. – Disse com firmeza a última palavra, mais para si mesmo do que para a figura que surgia diante dele.
            Apagou a luz, andou para fora do quarto e fechou a porta, abandonando o espelho e a estranha figura à escuridão.

                                               IV

            - Bruno, seu pai quer falar com você. – Disse uma das empregadas da casa, Shirlei. Uma mulher de altura tímida, não tão discreta quanto as formas do corpo, tinha sempre o mesmo problema com dietas e com os doces, sempre os doces. Sempre parecia estar sorrindo e achava feio que não sorrissem, por isso achou feio quando Bruno chegou perto, carrancudo, mas era filho do patrão, o conhecera um dia antes e já ia arranjar problema? Passou o telefone pro garoto, se afastando para ir embora logo, mas mal fez uma curva saindo da sala, grudou na parede atrás dela, para poder ouvir a conversa sem ser vista. Era um dos male da gordinha, ser curiosa.
            - Oi pai. – Disse secamente, tentando se conter, a voz de Bruno. Esperava que o pai fosse pedir desculpas ou oferecer alguma compensação como sempre, talvez uma promessa de outra viagem para os próximos dias. O adolescente esperava isso e, quando o pai falasse, o iria bombardear com palavras odiosas ou algo que sabia que iria irritar o pai, ele não merecia atenção alguma.
            Mas não foi isso que aconteceu.
            - Bruno, olha, aqui é o seu pai. Eu sei que deve ter sido uma merda eu ter saido ontem assim no meio da tarde, a gente mal tinha chegado, mas o pior é que vou ter que ficar pra cá mais uns dias e... – E antes que Bruno pudesse falar alguma, vozes falaram com seu pai ao fundo e ele retornou com a voz apressada – Desculpa, filho, vou ter que sair agora, a gente se fala amanhã. – E o telefone ficou mudo do outro lado.
            Shirlei quase pulou de susto quando ouviu o adolescente gritar e arremessar o telefone na parede com toda a força, fazendo dele em pedaços. Mas ela se limitou a apenas fechar os olhos rapidamente quando aconteceu. Ela queria ter sido uma mosquinha para poder ter ouvido o mesmo que Bruno ouvira e talvez entender o motivo da ira do rapaz.

                                               V

            - Você não vai falar nada...? – A figura feminina estava em silêncio fazia alguns minutos, desde que desistira de falar com o garoto que se jogara no chão alguns minutos atrás, como um saco de arroz, com as costas num sofá abandonado e coberto por uma lona. Soprando a fumaça que tirava de um cigarro na boca, Bruno se limitava a encará-la, sem responder nenhuma pergunta.
            - Você não existe – Disse ele, finalmente respondendo à garota.
            - Existo! – Gritou ela, já irritada com aquilo. O garoto ficou indiferente, soprou mais um jato de fumaça branca e encarou-a com os olhos inchados.
            - Não existe. – Repetiu com uma voz cansada. Tinha certeza que estava louco agora, mas parecia calmo em relação a isso, como se tivesse aceitado sua situação – Faz parte da minha loucura. É óbvio que eu ia enlouquecer uma hora... E... – Levantou as sombrancelhas numa expressão surpresa fingida – Enlouqueci.
            - Pergunte qualquer coisa, eu provo que sou real. – Implorou a moça.
            - O que é você, então? – Perguntou, com uma expressão de escárnio, não importava a resposta dela, ou assim ele pensou.
            - Sou uma... – Ela pensou um pouco para responder – Uma garota. – A resposta fez o garoto tirar o sorriso do rosto e tomar uma expressão de ira, começou a gritar.
            - Eu sei que você é uma garota, porra! Eu tou vendo! – E jogou um dos tênis no espelho, o objeto atravessou o vidro, como se tivesse mergulhado nas águas de um lago, fazendo ondulações no vidro. Quando chegou do outro lado, a menina colocou desajeitadamente os braços na frente do rosto para se defender do tênis e conseguiu.
            - Meu deus, desculpa... – E, chocado com aquilo, quase saiu de onde estava para ir para perto do vidro ajudar a moça quando... Espera, não seja idiota... – Você não existe – Voltou à própria indiferença, tragando de novo enquanto a ponta do cigarro brilhava alaranjada, deixando um rastro de cinza queimado para trás.
            - O que acha que foi isso então?! – Gritou a moça, se recuperando do ataque do tênis.
            - Um truque. Minha mente está tentando me... – E abriu os braços pensando se deveria mesmo estar discutindo com um fruto da sua imaginação – enganar.
            - Eu acho que você super estima a própria mente. – Resmungou a moça, trazendo por alguns segundos a ira de volta ao rosto de Bruno. Ele quase jogou o outro tênis e ameaçou quebrar o vidro com as próprias mãos se fosse o caso quando desistiu e jogou de volta o tênis do lado do pé.
            - Você não existe, você não existe. – E ficou repetindo com um sorriso no rosto de quem está tendo uma vitória. Consigo mesmo, talvez. – É bonita, fala bonito. Mas não é... real...
            A moça ruborizou com o elogio, de uma forma que deconcertou o garoto. Meu deus, acabei de cantar uma ilusão. Não, não foi uma cantada, saiu sem querer, eu só estava... Espera! Ela não existe! E começou a bater a própria mão na cabeça.
            - Ok, pode ir embora. – Disse, por fim, abanando as mãos na direção da moça.
            - Ir embora pra onde? – Perguntou ela, confusa.
            - Pra qualquer lugar, sei lá, suma para dentro do vidro. Só desapareça da minha mente, eu não... eu não quero ficar louco...
            - Meu deus... Olha, se eu pudesse fazer qualquer outra coisa além de ficar olhando pra um garoto infeliz, eu faria, mas eu... – Ela foi interrompida quando Shirlei entrou no pequeno quarto, encancarando a porta e chegando perto do garoto para avisá-lo do jantar.
            - Eu não vou comer. – Respondeu seco.
            - Mas Bruno... – Começou a gordinha, que logo foi cortada pela ira do garoto.
            - Eu já disse que não vou comer! – Gritou, furioso. A empregada se virou e iria ir embora o mais rápido que podia, quando viu a figura feminina no espelho. A moça estava com os olhos castanho-claros fixos na empregada. As duas se entreolharam durante alguns segundos, Shirley se manteve rigidamente boquiaberta. Fez um sinal da cruz, o que chamou a atenção de Bruno, que saiu de sua depressão no mesmo instante para se levantar surpreso. – E-e-e-espera, você pode ver ela? – Perguntou, apontando para a garota. Todos os três estavam assustados, se entreolhando.

14 de jun. de 2011

Melissa

                                                           I

            Não! Gritou enquanto lançava a cabeça para fora da água, puxando para os pulmões o ar como se fosse o primeiro de sua vida. O coração da jovem batia rápido, assustado. Pesadelos, foi um pesadelos... Abriu os olhos feito safiras na direção do vazio. Um olhar de convicção em contraste com o corpo trêmulo. As mechas de cabelo escuro escorriam água colados ao rosto molhado. Encarou o vazio com convicção. Isso é o real, se acalme, aqui é o real, aqui é o real.
            Levou as mãos aos olhos para tirar um pouco da água do rosto, já mais calma, e olhou ao redor, agora buscando as mesmas coisas de sempre. O criado mudo que servia de base para a luminária de formas inconstantes lutando num cilindro. Os pôsteres do Nickelback. A cama. O edredon macio. Nada estava lá. Estou numa... banheira?
            A água cristalina apenas deformava em pequenas ondas o corpo nu, mas não o escondia. Estava no extremo de uma espécie de pequena piscina em formato circular feita de porcelana e aberta no chão, com quase um metro de profundidade. Ela levantou o corpo miúdo, mas de mulher, buscando qualquer coisa que pudesse lhe ajudar.
            Os olhos encontraram paredes tão brancas que unidas não pareciam paredes, e sim o infinito diante dela, para todos os lados. Tateou a borda da minúscula piscina e encontrou uma enorme toalha de tom azulado. Enrolou-a no corpo e tirou os pés da água.
            As gotas pareceram manchar o chão como tinta, tornando-se vermelho sangue ao respingar no solo. Sangue? Ela talvez tivesse dado atenção ao fato se as linhas das paredes não tivessem surgido de repente, assim como uma estranha porta de madeira onde antes havia apenas um horizonte infinito e branco.
            A maçaneta de metal prateado girou, cada segundo fazendo os olhos confusos da jovem suspender mais ainda a respiração. Eu não estou em casa, não é meu quarto, não conheço esse lugar. É outro pesadelo...?
            Os olhos estavam embaçados nos primeiros segundos. Viu um homem se aproximar com o rosto vermelho, pensou a primeiro momento que talvez fosse alguma máscara ou seus olhos misturando os tons de algum cabelo ruivo com o rosto branco numa ilusão rubra.
            A nitidez voltou aos olhos. O pânico de batidas rápidas voltou ao coração, assim como o corpo rígido, paralisado, enquanto via o macabro: sob um corpo jovem, vestindo um casaco de peles e uma calça negra de couro, estava um crânio nu de cabelos, olhos e até mesmo pele. Apenas a estrutura óssea do crânio, manchada num vermelho sangue, estava ali, a encarando com suas órbitas vazias. Sim, é um pesadelo, tenho certeza. E jurou ver o crânio sorrir.
            - Bom dia Melissa. – Saudou a criatura macabra.

                                               II

            Pelo menos posso ver isso. Tinha acordado as cinco para se vestir naquela manhã gelada de inverno para pegar o ônibus e buscar aconchego no assento ao lado da janela, no blusão e em alguma música do Legião Urbana. Agora se consolava em ao menos poder ver o nascer do sol pelo vidro do ônibus, no horizonte, enquanto cruzava a estrada entre as duas cidades, separadas por diversas plantações ao longo do caminho.
            A grande esfera vermelha surgia num céu de azul tímido e nuvens sombrias.
            Olhou o celular para ver as horas. Um aviso de agenda saltava em cores importantes a importância do dia seguinte. Dezessete anos... Dezessete anos, sem namorado e nem mesmo a mínima idéia do que vou fazer quando terminar o colégio, isso é... chato. Até esqueceu de ver que horas eram.
            Agora saltava pela paisagem a cidade, quase vazia na maior parte dos lugares por onde o ônibus passava. No primeiro ponto, se sentavam três pessoas e duas delas subiram pela entrada da frente enquanto a terceira pessoa, uma mulher de traços nipônicos totalmente vestida de branco, lhe lançou um olhar confuso como se uma garota olhando pela janela de um ônibus fosse a coisa mais rara do mundo. O veículo continuou o seu caminho e a mulher ficou para trás.
            No ponto seguinte era onde descia. Ficou do lado de fora arrumando os fones de ouvido e a mochila nas costas enquanto esperava as duas amigas descerem para continuarem o caminho pro colégio. Dessa vez a pessoa de branco era um homem negro, de olhos castanhos e cabelo raspado. Havia subido junto com os demais que entravam no ônibus para ir embora daquela cidade enquanto Melissa chegava. O homem a encarou, de olhos esbugalhados.
            Melissa estava se acostumando, parecia que sempre que uma pessoa vestida de branco aparecia para ela, a via como uma assombração ou algo assim, sempre ficavam pasmos e a encaravam até que ela fosse embora, mas nunca tentavam falar com ela na maioria das vezes. Começou a pensar, pela primeira vez com mais atenção, no assunto. Todos eles sempre se vestem de branco, pode ser uma religião ou... sei lá... talvez tenham fugido de algum lugar.
            Ela sabia que provavelmente deveria dar mais atenção a isso, mas quando falava para as amigas percebia que elas estavam mais atentas falando de alguma coisa boba, que não tinham percebido as pessoas de branco. Nenhuma das vezes, são distraídas demais... Ou será que sou que só boto o olho nas coisas erradas. Talvez seja isso, quem sabe elas só não me encarem porque estou encarando elas? Sentiu um pouco de vergonha de sí mesma ao deduzir isso. Mas não era um problema, eram raras as vezes que apareciam essas pessoas vestidas de branco, as vezes uma apenas na semana ou mês inteiro, por mais que nos últimos dias a frequência deles tenham aumentado. Viu mais um, a olhando com uma expressão deprimida, da janela de um pequeno prédio comercial de dois andares. Droga, a música tinha parado e nem percebi. Religou o aparelho.
                                                           III

            - Vamos, se apronte. Parece que demorou a acordar, já é hora do almoço. Escolhi um vestido para você. – Tinha dito a animada criatura macabra que apresentava um crânio vermelho de órbitas vazias onde deveria haver um rosto. Desenhou um meio círculo enquanto se virava para ir embora.
            Vestido? Mas onde... Parecia que a criatura havia entendido os pensamentos de Melissa e tocou no vazio. Não, não era só o vazio. Tocou em algo que antes estava oculto. De repente, parecendo que partia dos dedos esguios da criatura, ia surgindo aos olhos da jovem um suporte de roupas feito de metal pintado em vermelho cromado, brilhante. Sobre ele estava um longo vestido branco. O tecido era macio quando o tocou. E branco. Achou irônico, talvez sem sentido, mas nada fazia sentido ali. Acabe logo. E forçou os olhos fechados, na vã esperança de que, quando reabrisse os olhos, se reencontrasse no próprio quarto, para começar logo a rotina de sempre.
Quando abriu os olhos ainda estava diante do vestido, com a grande taolha enrolada no corpo. Suspirou. Mas não podia negar que tinha curiosidade para saber até onde aquele sonho a levaria. Se vestiu de branco.

                                                           IV

            Bem melhor. Agora estava ouvindo algum rock inglês lento, mas não tinha nem reparado qual o nome da música. Ela brincava com isso, deixava o aparelho escolher uma música aleatoriamente e tentava descobrir qual música era. Não que fosse um jogo compensador. Fosse qual fosse a escolha dela, o aparelho diria o nome e nenhum dos dois – dona e aparelho – sairiam ganhando alguma coisa.
            O sinal vermelho para os pedestres estava aceso. Não fazia diferença, o centro era tão vazio na manhã que a chance de aparecer um carro no meio da travessia eram mínimas. As faixas brancas foram ficando para trás.Olhou para a direção da rua e percebeu que vinha um enorme caminhão da Elma Chips, a barriga roncou enquanto pensava em si mesma comendo um pacote de Ruffles. Apressou os últimos passos mesmo estando longe, por instinto. Já estava no outro lado, segura. Foi quando olhou para trás.
            Um menino que devia ter seus seis ou sete anos, todo vestido de branco, devia ter escapado da mão da mãe e agora estava parado no meio da rua, porque tinha voltado para pegar um pombo. O pássaro havia sido mais esperto, voando para longe. O garoto não. A imagem das roupas brancas do garoto serem manchadas pelo vermelho aterrorizaram no mesmo instante Melissa.
            - SAI DAI! – Gritou ela, correndo na direção dele para puxar-lhe a mão, num súbito ataque de adrenalina. As amigas viraram para trás, gritando por ela. O caminhão ainda estava alguns metros. Vai dar tempo, tem que dar...
            Os olhos diabólicos da grande máquina de metal não hesitaram, não diminuiram a crescer.

                                                           V

            Melissa cruzou um corredor sombrio. Parecia uma mansão. Uma mansão muito antiga. Um olhar rápido pelas gigantescas janelas de vidro que surgiam na lateral direita mostraram a ela como o céu estava nublado, escuro tal como fim de tarde. Continuou andando.
            Quando saiu do corredor, teve certeza que estava onde devia estar. Era um grande salão de refeição nobre. Uma longa mesa retangular se extendia, lançando aos olhos inúmeros pratos e uma variedade enorme de frutas. Ela se sentou na cadeira mais próxima, era a última. No outro extremo da mesa estava a macabra criatura de crânio vermelho, voltando a parecer que sorria, sem Melissa poder explicar como. Entre os dois, do lado direito, havia um rapaz, talvez vinte anos, atacando um prato de arroz com feijão e uma coxa de frango sem muita calma. Um capuz escondia parte do cabelo, mas ainda era possível ver o rosto. Eram olhos negros como a noite e sinistros como a lua cheia. Ainda bem que estão voltados para o frango e não pra mim... Tinha um rosto firme, triangular e uma barba por fazer, castanha. As feições do rapaz lembravam à Melissa os noticiários sobre os árabes do oriente médio.
            - Ora, está linda, Melissa. – Saudou a criatura macabra.
            - Obrigada, senhor. – Respondeu quase por instinto, tentando olhar para a criatura sem parecer que estava olhando para uma assombração, que era o que estava acontecendo, não queria deixar a mostra sua estranheza, seria deseducado. Quase disse que ele também estava bonito, mas as palavras eram tão grossas em falsidade que não quiseram sair da garganta. Mas como assim? Isso é só um pesadelo, porque estou pensando nisso?!
            - Desculpe não ter me apresentado antes, meu nome é Tanat, dono não só dessa mansão, mas de toda região ao redor. Não quero me gabar, mas está diante de um lorde! – E soltou uma gargalhada. Melissa tentou esboçar, com certa dificuldade, um sorriso. Assim como gargalhou de repente, ficou sério de repente, num contraste tão macabro quando sua cabeça. Apontou para o rapaz – Ele se chama Suen, um convidado de honra, assim como você.
O rapaz parou um instante de morder o frango para poder mastigar sossegado.
Nesse meio tempo enviou um olhar cansado para Melissa. Voltou para o frango no instante seguinte, sem dizer nada.
            - O-oi – Respondeu sem vida, tal como o olhar do rapaz.
            - Bem, sirva-se. – A macabra criatura já tinha preparado o assento para ela, o prato, talheres e as opções próximas, estrategicamente escolhidas, ela pensou. Parecia que ele conhecia o gosto dela. Serviu-se com certa timidez.
            Tanat não comia nada, nem mesmo tinha um prato a sua frente. Só os analisava, enquanto os cotovelos pousavam na mesa e as mãos se seguravam abaixo do queixo, uma delas trazendo um anel em forma de crânio de prata num dos dedos. A criatura percebeu a inquietação de Melissa em relação a isso:
            - Bem, assim como vocês, eu não preciso comer nesse mundo. Mas, diferente de vocês, não vivi muito tempo do outro lado para minha alma sentir fome de sabores. Mas sirvam-se.
            - Como assim? – Perguntou ela, parando de comer no mesmo instante. – O-outro lado? – A resposta parecia assustadoramente óbvia naquele contexto, mas gelou quando ele a pronunciou.
            - Ora, os mortos não precisam comer. E você não precisa comer, afinal, você está morta, Melissa. – E novamente o rubro crânio pareceu sorrir.

                                                           VI

            Ela alcançou rapido o garoto, era só puxar a mão do menino e os dois estariam salvos. O caminhão estava longe. Na pressa, ela lançou sua mão sobre a dele e puxou, já olhando para o caminho de volta, principiando a correr. Mas a mão estava vazia.
            Ela olhou para trás e tentou, desesperadamente pegar o garoto pela mão. Agora estava vendo o que estava acontecendo, ou melhor, o que não estava acontecendo. Sua mão apenas deformou a mão do garoto ao tocá-la, atravessando-a, assim como se deforma a imagem de uma linha de fumaça branca ao cortá-la com as mãos.
            O garoto, vestido de branco, estava surpreso e boquiaberto:
            - Você pode me ver?
            Ela estava em choque, sem entender o que era aquilo. Por um alguns instantes sua mente queimou em pensamentos para tentar achar lógica nisso e eram instantes preciosos.
Os gritos das amigas não serviram para chamar sua atenção, nem mesmo o som ensurdecedor da buzina do caminhão.
            O corpo intocável do garoto. Os gritos. A buzina ensurdecedora. O medo e a confusão. Eram as últimas coisas que Melissa sentira.


Influências

          Influenciar e incentivar as pessoas a fazerem coisas é uma coisa interessante, você não percebe o quanto isso acontece ao seu redor, pensando que está sob uma nuvem de fumaça, observando e analisando com olhos críticos, pensando que suas palavras são só suas. As vezes a nossa influência é só uma pequena sementinha na alma de uma pessoa, crescendo aos poucos com os nutrientes dos dias, meses e talvez anos, que nem percebemos quando ela se torna algo real.
           E quem nunca viu outros utilizando suas palavras? Ou o contrário? O quanto de suas palavras são palavras que não suas? É divertido pensar como quanto dos seus sentimentos são sementes crescidas dos pensamentos de outros.
           As vezes a influência na verdade é só um chute para arrebentar a porta que a insegurança ou a indolência te impede de atravessar, como recentemente percebi. Sempre adorei escrever quase tanto quanto ler, de uma forma estranha, como se palavras fossem uma extensão do que sou, mesmo em ficção, poder repassar não apenas pensamentos e sentimentos para o papel, mas sensações. A confusão. O medo. O riso, talvez minha sensação preferida e muito difícil de sentir em dias de chuva, como as últimas estações, mas parece que meus dedos se fazem diferente de minha mente e a converte. Uma chuva no céu vira um céu ensolarado nas palavras até que meu próprio céu, que nem do papel e nem o das nuvens, começa a brilhar. Mas, mesmo assim, mesmo gostando, sempre fui enrolado. E, com a certa influência de alguns amigos novamente a porta foi arrebentada, chutada pra longe.
           O que enrolei tanto, porque minha maldição é ser enrolado, é que muito provavelmente surgirão contos e crônicas no Blog, e verei se dessa vez consigo manter a chama da escrita acesa.